Manual de instrução para voos
ou um azul de todas as cores
É possível da Poesia saber-se de quê?
O poeta Manoel disse que ‘poesia serve de nada’ e somente ‘as
coisas que não pretendem’ é que caem bem pra Sua feitura. Também, sabe-se, não
enche bolsos ou se presta a escambos; tampouco alivia uma dor de estômago. Ausente
de valor, e nem o acrescenta, por que cultivá-La, pois? Talvez justamente de seu ‘inutensílio’ surja
sua maior instrumentação. Sigamos. Uma folha a cair, uma pedra atirada, um
movimento no lago. Onde a praticidade de se compenetrar nessas expressões?
Nenhuma, quem sabe. Mas, se lhes capturarmos os desdobramentos, em imensidões
todas, bem possível seja que novas e/ou ricas impressões nos emerjam. E, assim, um leque fresco de gradações se
dispõe a nos ampliar os olhares ante a vida. (Pra isso Ela, a Poiesis, veio-nos?).
Indumentar-se de pássaros e alçar voejos.
Há um apelo de canto e impulso de se ver as coisas de cima
que atravessa o coração do homem. Um desejo íntimo de incorporar essa vontade-metáfora.
Logo, o voo não seria um retorno à escala dos passeriformes mas sua representação interna na compreensão do
mundo. O voo, que aqui se convida, independe de asas físicas: o voo é pra dentro.
Adejar, nessa concepção, não requer-se-ia o desprezo aos pés; ao contrário,
seria condição primeira. À isso, uma magia de inversão nos elementos seria preciso:
uma âncora é lançada ‘no céu’, como um aporte no cais de levezas, pra aos pés
fazê-los flutuarem, como se flutuariam nas águas, de tenuidades, sem o volume
denso das águas. Pêndulo sustentado pelas mãos do etéreo. Ao que pesava,
nuvens; onde havia turvação, azuis. Eis a fórmula! ‘As aves do céu não semeiam
nem fiam, no entanto, são alimentadas’. É dessa postura (de entrega – poética?)
que vem a provisão? Quem aufere provisão, é óbvio, em paz fica/está.
Um livro a celebrar o livre.
Melros, pintassilgos, colibris e mil outros serezinhos
alados versejados num canto pastoril. Um concerto pela liberdade. (E, ah, já
notaram que um livro aberto tem o formato duma ave em voo? Que seu ‘v’ é bem
sugestivo: uma viagem voluptuosa – vertiginosa? – ao viés de vastos e
verdejantes vales?) Um livro como manual a se ‘lecionar pássaros’, alfabeto de
gorjeios, pipiares, chilros. Eis sua proposta.
“Toda menina baiana tem um jeito que Deus dá”
Wanderly Frota é baiana, nascida na mesma terra de muita gente
notável: Jorge Amado, Castro Alves, Joana Angélica, Afrânio Peixoto, Ruy
Barbosa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, são alguns deles. Dos grandes, por
bênçãos, cedo recebeu a tocha incandescida pra acender outras almas e, por
escolha, talvez não de si, optou pelas letras. Seu interior, como o de todos
que escrevem, é vastamente belo, porém inquieto. Quesito básico à Litteris. Wanda (ou Wan, como carinhosamente
chamam-na, em gráceis hipocorísticos de seu nome) tem um mistério que intriga:
na exata medida de sua pueril jovialidade, contrabalanceia-se uma força maturada
no que enuncia, no que faz evocar. ‘No tabuleiro da baiana tem... (vatapá?
sedução?)’. Embora seus estudos se voltem à Arquitetura, abandona por vezes a
precisão dos traços pra dar vazão ao impreciso das grafias, ao ilógico da
intuição artística. Parece contradição mas há um ponto aí em que se unem: um
Niemayer bem pode ser um poeta das formas assim como um Rimbaud pode ser um
arquiteto das palavras. Contudo, o caso dessa baiana ainda é outro. Para
entendê-la, requer-se ler suas letras além delas.
A chave que abre sua gaiola
A capa do livro “Voos” traz a figura dum pássaro ‘saindo’
duma gaiola. O gerúndio empregado no verbo ‘sair’ não foi por acaso: traduz
movimento. Embora remeta a uma fotografia, pela imagem estática, sua ideia
sugere um filme. O poeta de Mossoró, Reynaldo Bessa, disse ‘Poesia é a infinita
tentativa de aprisionar o voo dum pássaro numa gaiola’. Um paradoxo a desdizer
o proposto? Veja-se. O menestrel diz do ‘reter uma das belezas das aves’, que é
seu adejo, sem, no entanto, comprometer uma ‘beleza maior’ e anterior a essa
que é a liberdade. Afinal, pássaros engaiolados não voam! Já a Wanderly procura
lançar luz sobre outro aspecto que teria ainda mais gosto: o de ganhar a liberdade. Assim, toma da
escrita como um ‘quebrar de correntes’, leitmotiv (motivo condutor) da alma a
se desprender dos aros do corpo pra tocar as alturas. Claro, sua passagem de
menina à mulher, consciente ou inconscientemente – posto que a mesma é muito
nova -, busca seu lugar no mundo e, sabemos, que tudo que nos diz, diz também o
que somos ou pretendemos.
Dos versos, diversos, de ver sóis
“Escrevo curto/A vida é tão breve...” Com essa epígrafe a
autora preludia o livro já expondo a temática central que perpassará suas
linhas. A vida! (Há vida? E é ávida?) Há que ter-se precauções na emissão de
opiniões quando trata-se da escrita. Wanderly Frota escreve mais pelo derrame
íntimo que pela clave gráfica; mais por seu amor que precisa se estender do que
por envaidecimento pessoal. Assim, dela espere o que tenha ‘Vida’ e d’Ela
trate. Suas palavras se descascam facilmente pois não se apegam às formas; seus
frutos, no entanto, são carnudos, repletos de gosto. “Um dia desses, sem
atraso, a gente acorda pra ser feliz de vez.” Ou ainda: “Hoje só fica o que me
traz o riso.” Essas são colocações de quem vive e é avivada pela existência, de
quem ama a vida que tem por ter tanta vida em si. Tomando o que verte, opera
como coaching. Sua poesia vem da contemplação amorosa do que move e faz
crescer. Isso se faz notar nas escolhas que nomeiam seus títulos: ousadia,
grandeza, confiança, etc... Mas, impossível ‘pegar’ o que redige, é sensível
demais. Palavra é biografia, personalidade escancarada. Podemos pela simbólica
traçar seu perfil em tenras comparações:
Seu
elemento é o ar: a dança nas frases o confirma;
seu
instrumento é a flauta: um sopro lhe faz canção;
sua
cor é o azul: espelha o que tangencia o sem-fim;
sua
pedra é o topázio: sua condição prismática o determina;
sua
estação é a primavera: está sempre em flor;
seu
astro é o sol: ilumina de forma contínua;
sua
essência é o amor: transforma o que toca, transcende explicações...
Chama a atenção como tem se reconfigurado ao ser. A
impressão que tenho é a de que promoveu uma troca de cores nos órgãos internos:
seu pulmão expande tanto de vida que avermelhou, seu coração abraça o mundo com
tamanha devoção que somente o anil parece lhe vestir. Um misto de fogo e ar
traduz, visto que nos queima sem arder, ventila sem deixar de oferecer calor. É
como se colocasse o coração (vermelho, fogo) nas mãos e os soprasse (ar, azul)
pra nos afetar das delícias que escreve. Nosso contato sempre rendeu boas
palavras e escrevi-lhe isso outrora:
“Voo passarinheiro: ‘quero-quero’ amor alado onde, acaso não
puder ‘beijar-a-flor’, ao menos cante ‘bem-te-vi’.”
Sim. Porque só de saber [ver] que existe alguém assim, nosso
melhor é liberado, nosso coração toma conta de tudo. Não há como sair ileso de
seu toque, não há como sair impune de sua beleza. Em um texto intitulado “Dente-de-leão”
a poeta se desmancha pra ser só amor:
“Quero ser como o dente-de-leão: se os ventos me levarem pra
longe, eu vou sorrindo, fazendo poesia pela estrada.”
A mencionada flor que também recebe o nome de
‘amor-dos-homens’ é perfeita pra designá-la. E é o que ela é e nunca conseguiu
esconder: puro-amor. Seus minis paraquedas dispersos no espaço são a certeza
das centenas de voos que faz quando um simples sopro lhe toca. Mas somos nós
quem nos desmanchamos quando ela sorri, essa é a verdade. Seu sorriso aponta
pro paraíso. Acredito que o início da Criação tenha sido algo similar: Deus
soprou e centenas de esplendores nasceram, houve
luz! Com delicadeza, é fácil perceber em Wanderly Frota o sopro divino.
Como não ser grato por sua florescência? Nossos jardins ainda têm esperança.
Seu perfume nos beija. Também queremos, um dia, voar.
Moreno
Pessoa
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